Perspectiva interna
Havia permanecido nas duas criaturas, pai e filho, uma imagem que em pouco tempo estaria condenada a receber uma mancha reminiscente. A imagem em questão era a do sol que perfilava o ar fazendo-o expor os grânulos de partículas em suspenção perenes e calmos daquela manhã. Para este efeito, a luz atravessava a janela de um dos corredores da casa de campo, ela direcionava a uma cadeira muito antiga que ficava ao lado de uma pequena mesa, esta contendo um vaso com uma planta bem cuidada e alguns livro bem empoeirados que serviam senão para apoiar notas fiscais, ou objetos de uso mais recorrente do que aqueles livros. Essa memória imagética era ótima e renovadora, muito feliz, transmitia o ar bucólico da casa de campo onde visitavam aos fins de semana, lhes davam também certa nostalgia, apesar de serem muito constantes as idas nessa época do ano. Este enquadramento era mais significativo para o pai, o fazia lembrar da infância. E o menino, recém feito 18 anos, tornava a ficar apático aos sentimentos que lhe eram trazidos, pois tentava suprimir a paz de espírito e contemplação que o ambiente forçava em si, à medida em que isso o fazia se sentir menos adulto. Família para ele já era coisa que ficara em seu passado, demasiado adolescente e infantil, evitável na sua então consciência, mas continuava viajando com seus pais para o interior, mesmo sem ser obrigado, por mero comodismo, ou até mesmo porque ele sobretudo não estava pronto para uma separação e, para nada disso, ele tinha sequer ideia, não entendia os próprios sentimentos. Naquele dia, a mamãe ficara em casa pois tinha compromissos, foram só o filho único e o patriarca. Programas mais masculinos foram planejados, coisa boa.
A imagem a que referiam as mentes dos dois continha elementos sólidos e duros, retos, típicos dos tijolinhos com que eram construídas casas antigas neste país. A coloração, madeiras pintadas de azul, um que já estava meio escurecido pelo pouco tempo em que foram pintadas, as paredes e chão, avermelhados, terrosos, quentes. O calorzinho matinal de onde vinha a imagem era especial, carregava um, então, conforto imenso, antes de outra coisa. A janela, era mal visto e ofuscado pelo brilhante da luz o pouquinho de verde advindo das árvores ao fundo, não se podia vislumbrar o chão florido que outrora a vovó havia cultivado. Sentados, observando a cena, o jovem nem quis apanhar seu celular, e o pai abondara a ideia de fazer o mesmo com um jornal ao lado, apesar de sentir a vontade de o fazer, após lembrar que já há alguns anos não comprara um numa banca. Era um dia especial, mas só por esse detalhe do jornal — então de fato não era — restou essa ideia mediana na mente do mais velho. Toda essa normalidade foi preservada até o evento que aqui será narrado, que sucede os dois dias de fim de semana passados por nossos protagonistas.
Iam embora e, guiado pelo rapaz que recebera há pouco a carteira de habilitação, o veículo avançava pela floresta, na noite intensa e escura, densa e entrecortada por uma estradinha de terra. Não falavam nada, o pai sentia orgulho do filho que dirigia, era mais importante do que tudo naquele momento. O jovem, quieto, prestava muita atenção no caminho, apertava bem os olhos para enxergar cada um dos detalhes a frente, inclusive aqueles cujo farol não desobscurecia. Mesmo nas outras vezes que viajara, estava cada vez mais difícil ver o trajeto à sua frente quando voltava dirigindo a noite, muito ofuscado o horizonte lhe aparecia conforme o tempo sem umidade prolongava-se. Há anos, o garoto também sofria de uma perda de visão advinda do uso indiscriminado da tela de brilho azul, mas nada sabia, porém, destes efeitos em seu corpo, ou do porquê era tortuoso ver a estrada, carregava consigo outras preocupações. O único som ali por de dentro da cabine era aquele abafado ruidoso característico do interior de um carro, produzido a partir da colisão constante de pedregulhos do chão e galhos de árvores contra a lataria do automóvel, sem contar com aquele suspiro fricativo surdo da poeira seca que sobe e se arrasta pela extensão da máquina com o cortar das rodas na terra, todo eco era devidamente reduzido e distribuído pelas paredes internas por conta do isolamento sonoro das janelas fechadas. Um som ambiente era o instaurado, muito capaz de gerar enorme conforto e paz naqueles que possuem sono, após um dia agradável e colorido.
O percurso era relativamente longo pelo trecho de natureza, cerca de 40 minutos, um belo punhado de quilômetros. Estavam ainda no início dele quando subiu um cheiro de lareira provocante no espírito de ambos, vindo direto das ventoinhas com o ar condicionado desligado. Era um bom cheiro, não queriam fechar o sistema de ar do carro pois acreditavam mesmo ser proveniente de alguma fogueira mais ou menos distante e inofensiva. Sem que se preocupassem demais, após minutos em que o cheiro tornava a ficar mais intenso, fecharam o ar. O pai já sabia que era algo a mais, quem sabe algum agricultor “limpando o solo” ou coisa semelhante. O filho sequer pensou a respeito. Não foi sem um aperto leve no tendão das pernas que o senhor mais avulso, no banco do passageiro, reparou que o céu se abrira um pouco mais claro, ainda acinzentado, realçando a silhueta da copa das árvores, espessas e atlânticas. Inclinou-se no banco torcendo o pescoço para olhar para cima no para-brisa, afirmou sem parcimônia, “Tá rolando um incêndio”. “O que?”, respondeu o jovem dirigindo, quase assustado, ainda ausente de certeza. “É, só pode ser. Mas não vamos passar por lá, eu acho. Também é só continuar o caminho, já já chega na rodovia”.
Continuaram. Segurava forte o volante o filho, tendo as pernas agitadas, involuntariamente aqueles músculos contraíam-se de pavor. Não era diferente o pai, que controlava, de modo apenas aparente, esse medo. Passaram-se 23 minutos desde que sentiram o cheiro pela primeira vez e tudo já brilhava como o dia, mas com uma coloração infernal de um vermelho e amarelo violentos que haviam se intrometido a ocupar, sem convite, a serenidade noturna. O horizonte não mais penava a visão, mas ardia numa constelação de labaredas imensas por detrás de silhuetas de árvores. Tendo reduzido em muito a velocidade do carro, disse o menino: “A gente vai?”, enquanto gesticulava somente com a cabeça um olhar para estrada a frente, tinha o tronco angulado para a frente, deixando seu peito próximo do volante. “Vamos descobrir já já, né?” respondeu seu velho, que continuou: “Acho que dá pra passar por isso”. “Que!?”, respondeu o outro. De tempos em tempos, este metia a mão com força na janela ao lado em busca de sentir sua temperatura, mas em vão, pois ela se achava ainda fria, ou pelo menos mais fria que sua palma. Ofegante e após alguns segundos, perguntou o rapaz: “Pai, e se o carro explodir?”. “Bom, aí já era, estamos mortos”, respondeu o pai com uma frieza advinda do pavor que escondia debaixo da pele.
Passando apenas poucos duradouros segundos, o vislumbre do claro terror era visto por nossos heróis também aos lados e pelo retrovisor, sugerindo já estarem em meio à outras frentes da lambida do diabo. “Pai, isso é fudido! Caralho”. “Eu sei”, respondeu o pai ainda sério e muito assertivo, parece mesmo que seus nervos mudaram de perspectiva, estavam dentro do caminho e dentro da realidade, no interior sólido de sua própria certeza de trajeto, subjetivamente, concentrava sua atenção apenas no incêndio, que virou a ser um evento como qualquer outro, um obstáculo breve e não diferente dos que costuma enfrentar cotidianamente, sabia que aquilo exigia a serenidade de um homem inteiro. Orgulhava-se, no antro de suas vísceras, a tamanha calma que de repente adquiriu para lidar com a situação, como alguém que verdadeiramente ama a vida de seu filho antes da sua. “A gente não quer ficar preso aqui”, disse em seguida, e continuou: “Calma, calma… Ok, estamos bem, estamos bem, estamos bem”. “Reduz, reduz isso aí, reduz aqui”, e ia apontando com a mão para que o outro virasse aqui ou ali, direcionando o jovem atordoado como um ótimo mentor. “Acho que está ali o fogo, não vamos passar ali”, continuava.
Mais alguns minutos depois, porém menos do que antes, a paisagem já se transformara novamente, agora vivenciavam algo nunca antes vivenciado. O que era silhueta distante tornou a sumir por uma entrançada cortina cinzenta de fumaça. A vegetação não vivia mais, esmarridas, extintas e finadas, as árvores e plantas serviam como propósito único o de alimentar a sede de Hefestos. Elas estavam irreconhecíveis senão pelas suas formas antigas, pois, tingidas de carvão e iluminadas de brasa, estalavam para todos os lados um espetáculo de fagulhas quentes, estas choviam com abundância no para-brisa do carro que sofria queimando-se lentamente seus pneus por conta do chão, igualmente banhado de ranhuras flamejantes. Disse o filho: “A gente tá no fogo, pai!”. “Não”, respondeu. “Estamos sim”, insistiu. “Mas tá tudo bem, não passamos em cima de nada pegando fogo, a estrada tá limpa”, finalizou o pai. Este último prestava mais atenção nos troncos de cem metros adiante, estava preocupado com uma possível queda de árvore, não havia reparado tão afundo no assoalho da floresta em chamas.
O caminho ia ficando cada vez pior, troncos, arbustos e galhos ocupavam cada vez mais espaço ao redor, tudo isso ao som do fogo e estalos de lenha acesa, porém ainda abafados pela segurança interna do veículo. A fumaça que no antigo horizonte era cinza, agora abria-se num laranja iluminado. As labaredas invadiam uma porção bem avançada da estrada de terra e batia com vigor na lateral do carro. Estavam, sem dúvida, no interior do incêndio. Esta intensidade forçou o patriarca a advertir o filho, “Vai com calma, mais devagar! Calma… Devagar, devagar, vai indo aos poucos aqui, tenta desviar!”. Interditados foram os coitados por uma tora de diâmetro próximo à altura do carro atravessada na estradinha, a barreira ardia num fogo quente que os fizeram pela primeira vez sentir que talvez não seria possível estar no dia seguinte para contar o caso em forma de história fantástica. Havia, todavia, ainda, uma decisão a ser tomada sobre aquilo que acabaram de ver. Voltar? Esperar? Sair do carro, jamais, porém disse o filho, “O carro tá esquentando demais! Vai explodir! Esse carro… Vai explodir! Pai! Caralho!”. Em uma tentativa de acalmar o garoto, respondeu apenas “Calma”. Mais alguns momentos de tensão se passaram em silêncio, o rapaz disse, “E se uma árvore cair na gente? Caralho, pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, Deus, por favor!”, e ia balbuciando preces desconexas em uma vertigem de desistência de sua racionalidade.
Ouviu-se de repente, “Pai! Não dá pra sair, pai!”. O homem mais velho procurava panos no porta-luvas quando levou tal bronca. “Não dá pra voltar, eu- não tem como, tenho qu- sair, tem umas luvas aqui, vou pegar!”. “Temos que sair daqui!”, disse em desespero o garoto. “Não tem como! Eu, eu- estou saindo!”, respondeu o pai. Este desistiu de sair após refletir um pouco e mandou o filho dar ré. Virados de costas, dirigiram em reverso por um caminho curto, o carro já havia acendido muitas luzes de alerta. A fumaça que saía do capô da frente era invisível aos dois conforme não podiam diferencia-la daquela que atravessava o corpo do veículo. Tendo o carro perdido potência, o pai tomara a final decisão de sair do carro, já não era mais seguro, de fato.
Súbito, um silêncio confortável se instaurou internamente, após a batida da porta. O abafado trepidante mesclava-se agradavelmente com a visão das janelas que cada vez mais tornavam-se chamuscadas e pretas de fuligem, apagando aos poucos o cenário de fogo que consumia já as rodas e metal de baixo do carro. Este último, pouco antes de, de fato, desintegrar-se com seu próprio combustível, pudera admirar através do para-brisa, sombras fracas de dois seres humanos correndo para longe de si.
Havendo degustado tudo o que existia de externo, o fogo também tomou para si uma metamorfose macabra do interior dos seres deste evento. Retornaram todos juntos ao carbono. Suas reminiscências, enfim, tornaram-se, também, unas e eternas.