Neve que não é neve, sol, sombras: um pesadelo, dos piores

Pedro Seno
4 min readDec 1, 2023

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Fotografia do colégio Liceu Pasteur em São Paulo

Como sempre fiz durante pouco mais de dez anos, caminhava pela calçada do colégio, em direção à portaria secundária, local por onde sempre entrei, regras da direção. Caminhava acompanhado, mas não me lembro com quem, acredito que com meu grande amigo Rodriguinho. A instituição estava tomada por uma grande festa. O campo de futebol, a colossal clareira vazia e envelhecida, distinta do restante dos espaços esportivos, cheio de alunos, funcionários, pessoas desconhecidas. O pátio, idem. As arquibancadas que dão de frente ao campo também. Algo de comum havia entre todas as pessoas, elas carregavam consigo, em grupos, grandes carrinhos de comida, estavam vendendo pães, doces, fatias de pizza, pipoca, cocadas. E algo de estranho também abraçava essa grande confraternização: a chuva. Chovia levemente, e o campo começava a alagar em determinados pontos. Percebi outros antigos amigos meus à distância, participavam da cerimônia alimentícia, reclamavam da chuva, brigavam entre si, estavam sendo quem eles sempre foram. Era contraditório, todas as massas e pães molhavam com a chuva. Ninguém dava tanta importância quanto eu, mas pareciam incomodados, todos, em uníssono, silenciosos, tendendo à neutralização da situação, não querem mudar nada. Eu quis comprar algo para comer, tinha fome, muita fome. Tarefa completamente impossível que jamais se concretizou, tentei de tudo, não conseguia chegar a algum dos carrinhos para comprar um croissant, um bolinho, ou algo do tipo. Quando cheguei perto do campo, um dos carrinhos tombou numa poça d’água suja, violentando todos os belos alimentos, e assim começou a chover forte. Fomos nos abrigar no pátio interno. De súbito, estava eu com o objetivo de subir as escadas para adentrar os corredores e salas da antiga escola, com aquelas paredes cor de creme, arquitetura essencialmente velha, chão manchado, memória permanente. Fui, sozinho. Circulei e não sei o que fiz ali, esqueci. O pior estava por vir, quando desci novamente, encontrei Raphinha, outro grande amigo meu, era noite, tudo estava vazio, ainda queria comer e me surpreendi com o fato de que todo o colégio estava completamente ermo e escuro, um breu iluminado parcamente pela lua, sombrio, e ninguém estava lá, a morte, a ausência de todo o barulho e gente fez-se contrastante a ponto de machucar e gerar medo, perdi algo, acho que perdi o tempo, um grande medo meu. Perguntei o que diabos aconteceu a Raphinha, ele respondeu que já era meia noite, não teria motivos para alguém estar ali. Meia noite? Assustador, como passou tanto tempo se eu somente dei uma volta? (eu sabia que era só uma volta, mesmo que não lembrasse). Passo a mão no queixo como que pensativo, noto meu rosto liso, caio em mais sustos, pois eu cultivo uma barba há anos, não é possível. Estou no passado, nos tempos de trauma, tempos remotos na malha da lembrança, um pesadelo que torna-se ensolarado. Ando pela escola e de repente amanhece, começa a fazer sol, mas a sensação de perseguição das sombras permanece, invisível devido à quantidade de luz torrencial que o astro joga sobre a terra, uma ameaça constante e que não se sabe onde está, mas está perto. Tudo está gelidamente e plasticamente como costumava ser há 15 anos. Meus amigos todos estão reunidos, eles estão com seus corpos e comportamentos de adolescentes. Convidam-me para ir em algum lugar, Rodriguinho está comigo, é desconvidado, percebo incrédulo e chateado que o bullying voltou, a exclusão social, ostracismo, a derrota, recebo um embrulho estomacal quando vejo a cena. Recuso-me a ir com eles, se Rodriguinho não fosse. Por fim, eles todos vão, mas sem mim. O vestiário, um local aparentemente sem significado, sem lembranças, sem história, é para mim onde ocorrem todas as desgraças nos sonhos que tenho da escola. O vestiário masculino, vou lá à sua porta, não passo dali. Alguém me diz que fui amaldiçoado, foi-me colocado uma danação, das piores. De repente, começo a chorar de dor, compulsoriamente, estou sendo transportado no tempo de novo, mas agora, somente em pontos específicos do meu tempo, os momentos em que mais sofri, momentos em que mais tive crises de ansiedade, de pânico, o choro dói, ele rasga a garganta e os pulmões para sair, a dilaceração promovida pelo ato, ainda, é insuficiente, porque a dor tem a necessidade de explodir o corpo, mais do que é capaz de o fazer, então ela força a sensação de que isso irá acontecer a qualquer momento, uma tensão eterna. Estou aprisionado pelo passado, num procedimento desatinado de pulos entre tempos distintos, mas dores simultâneas, uma violenta análise sincrônica do meu sofrimento. Lembro-me do sonho anterior: meu tio morreu na minha frente, num acidente de carro, atropelando e matando outras duas pessoas, como que por um bem maior, um evento justificável, louvável, agradecido, mas por que? Era meu tio favorito, Léo, meu tio mais querido, morto dentro de um carro, a sua estranha imagem permanece tristemente. A noite do acidente nevava água líquida, estranhamente, era uma água branca e lenta de cair, era líquida, não era neve, mas nevava. Acordo.

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Pedro Seno
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Written by Pedro Seno

Estudante de Letras. Estudante de Audiovisual. Em uma constante busca por expandir a compreensão. Na verdade, nem tão constante assim.

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