Mais vite do que nunca
Tarde nublada friamente calculada para sua morte. Saía de casa após ter escrito numa caderneta as palavras “Por que tão prazerosa a macabra vontade de deixar a vida”. Felizmente o desejo consolidou-se. O ciclista Renato entrou velozmente na ciclofaixa em direção à sua aula na faculdade, nada podia parar a ira que sentia e aplicava nos pedais, forma de extravasar um sentimento ruim cultivado por si mesmo ao ser cruel com seus amigos naquele dia mais cedo, culpava-se e remoía as duras palavras que lhe dirigiram, “babaca!”, “vá à merda” e piores. Por um breve momento a 12,56 metros de distância de um semáforo, tornou a abrir em si um monólogo que interrompeu, à tangente do tempo, vite demais, o deslocamento espacial.
“Nossa, mas que repercute intensamente o termo, O termo, o melhor dos termos — num sistema isolado, a entropia só pode aumentar — que termo fraco, em suma, nada de original, que repercussão na mente insuportável, tão antiga a mim, deixarei isso para trás, termos novos têm de vir. Quais? Em todas as circunstâncias concebíveis, nenhum problema é insolúvel. Chega! Tão exato, tão preciso, nada humanístico. Como estudante de humanas, devo melhorar isso. Pense numa viagem, o que há de orgânico numa viagem? Ah, não. Chega…
-
(…)
-
I want God to come
And take me home
’Cause I’m all alone in
this crowd
(…)”
E tocou esta música de súbito, que o fez acalmar-se e refletir, lentamente, dentro do seu monólogo, palavras não ditas, pois mais sentia-as do que as concebia em signos linguísticos. Celebramos aqui uma interpretação traduzida das sensações, que vieram em meio às notas musicais:
“Que sensação ruim, que saudades que tenho dos meus amigos, eles me deixaram e falaram mal de mim enquanto não podia estar entre eles nesta tarde, os perdi. Perdi o tempo, ele se foi, não mais virá, irremediavelmente. Que dor, que arrependimento vulnerável e desagradável, bem quando eu ia bem da saúde mental me ocorre isso e o arrependimento é tão abominável. Como podes agir e se arrepender? Não se arrependerás de nada, um dia você declarou a seu pai - não há razão para esse sentimento, tudo o que aconteceu, aconteceu, sem que seja possível reparo, o reparo é futuro, é posterior, por isso o arrepender-se é um desperdício energético, é não aproveitar suficientemente o caos que somente cresce no sistema isolado. Sinto muito, lamento esta vida, lamento pelos outros que tiveram que se arrepender ao interagir comigo, nada mais execrável. Lamento esta vida, vontade de deixá-la, o cansaço nunca cessa. Sabe? Estávamos eu e eu nesta invicta investida, toda a saúde mental em dia por tantos meses, e ela consegue ser esmagada como uma cabeça no asfalto de um jeito pavorosamente rápido, vite, como pode? Essa dor nunca irá embora? Já tanto me disseram, para quê trabalhar se o mundo vai acabar? Então, também não sei. Mas é saudável, continuar vivendo é mais pelos outros do que para si e, se Durkheim acertou, o mesmo vale para o querer não continuar vivendo.
Thought you could avoid
the things that caused me pain
My past and your future
share a common name
(…)
Respire, é difícil fazer isso, mas é bom. Procure os termos. É a coerção do remédio que interfere diretamente no pensamento quando age, é o treinamento psicológico ao qual você foi submetido durante tanto tempo e tanto fez efeito até então. Mas por que a sensação errada de que é tudo pelos outros e não para si? Meu estômago não quer acreditar nessa mentira, veja esse termo que nada quer dizer, ‘mentira’. Ele não quer acreditar, o único órgão que resiste à essa ideia são as pessoas que vivem em mim e falam comigo constantemente. Este inconveniente órgão diz e nada significa, sombras de um objeto assígnico, é tudo o que ele me fornece nos momentos que o necessito vivo e significante. Treinamento cuidadoso que fazem, esses psicólogos previnem a morte, reparam a vida, meus órgãos recusam-se a acreditar que psicólogos fazem isso para eles. Honestamente, disse-me uma vez minha bexiga, sei que a sua saúde mental me afeta à medida em que evita acidez desnecessária, mas olha, acho que não e, como sua amiga, ‘vá à merda, babaca’. Daí, naquela noite, houve uma certa vingança e implicância de alguma das duas partes envolvidas nessa briga e, uma ou outra fez que eu urinasse no colchão enquanto dormia. Que vergonha, um adulto mijando na cama. Devo ir ao médico ou ao psicólogo, restou essa dúvida em suspenso.
Come… Chorus of night
Lay your head down
Bound
Fire decide
Heart of the sun
Caught
Lost to your thought
(…)
Sozinho. É isso que tu estás e lamentas, estás sozinho. Por isso sente falta dos seus amigos. E a dor que te sentes jamais será curada. Viverás com ela para sempre, entendas isso de uma vez. Não importa o que faça, é cansativo eu sei, é como repetir uma canção insuportável todos os dias da sua vida sem que possa interromper o rádio velho e quebrado de onde ela surge, o funcionamento da rapidez moderna é nitidamente este. Inspira-te nos momentos que vive bem, sem ouvir o rádio. Escreva e contemple, busque em vão a plenitude e a encontre onde não a espera, é uma criatura curiosa que não podes agarrar, por tão desejoso que esteja de tentar fazê-lo. Saber disso já te leva um passo a mais em direção a ela que se esconde em véu. Oblíqua a significação ao redor, por isso vês embaçado tantas vezes. Claro caminho nenhum é, mesmo quando vê perfeitamente a ciclofaixa à sua frente, quando habilmente desvia da rachadura, esquiva a poça e ri do transeunte perdido. Se claro fosse não teria como enigma pessoal a ser desvendado aquele pedaço oculto pelo tronco da árvore, que sempre quando você passa por ali se pergunta se uma moto poderia atravessar a neblina e atingi-lo numa única vez e para sempre. Come esse macarrão e passe o café saboroso, são as únicas coisas não cobertas pela cortina má que envolve seu bem-estar, elas lhe atingem com a verdadeira verdade do mundo, a experiência empírica que empírica não é, mas você sente que é, pelo fato perverso de não ser capaz de descrevê-las com significância suficiente para preencher as lacunas de tudo. Abra e viva.”
-
Nosso Renato parou no semáforo, satisfeito. Pensou na aula que teria logo breve. Quis comer. Esqueceu abruptamente de tudo o que pensara porque foi cansativo o ato da mente divagante. Pedalou forte como antes, mas sem a raiva que antes tinha, amenizou-se no exercício do caminho. Quando passou no quarteirão seguinte, dentro do espaço e tempo previsto pela lei do trânsito, encontrou-se com o imprevisto na lei do trânsito. Um senhor que xingou a mãe de seu filho dirigia irritado e tentando digitar o número de uma pessoa que podia ou não ser sua amante. Viu Renato na frente do para-brisa, fez que pisou no freio, no acelerador acertou o pé, errado, virou de mão e sentiu dor. Um ônibus acertou a lateral de seu carro e ele desembestou a chorar um minuto depois disso. Renato viu o tempo passar mais devagar uma vez mais. Sentiu o frio na barriga e a sensação que já tivera antes de “já era”. Tocou People On Sunday de Domenique Dumont na sua mente e lembrou-se do concerto que vira de Philip Glass, anos antes, foi naquele dia em que ele lembra de ter se sentido pleno. O farol do carro acertou seu peito, foi arremessado com força. Diante de seus olhos, uma monstruosidade metálica, tão grande quanto um planeta, rugido estrondoso, vibrante mortífero grave, ônibus laranjinha que ia sentido bairro, veio vite e muito vite, mais vite do que nunca esmagar sua cabeça contra o asfalto molhado de uma tarde nublada friamente calculada. Todos as pessoas que um dia conheceram Renato choraram fortemente sua morte, contra aquilo que ele mesmo acreditou ser uma inverdade, ainda que, de todo modo, fosse aos outros, significante.